O Espiritismo, por Gilbert Keith Chesterton.

Hoje em dia nos dizem que é preferível ter uma religião sem teologia. Eu acredito que nosso cérebro preferiria até uma teologia sem religião.

A característica peculiar do mundo moderno não é que seja cético, mas que seja dogmático sem que saiba. Nos diz, zombando dos velhos devotos, que eles acreditavam sem saber o porquê de acreditarem. Mas os modernos acreditam sem saber no que eles acreditam – e sem saber que acreditam. Sua liberdade consiste em primeiro assumir livremente um credo, e depois em esquecer livremente que o assumiram. Em resumo, eles sempre têm um dogma inconsciente; e um dogma inconsciente é a definição de um preconceito.

O debate sobre a ética do Espiritismo é um forte exemplo disso. Os espíritas agem segundo um dogma, que eles não podem enunciar dogmaticamente; e, portanto, só o supõem dogmaticamente. A maioria dos que são contrários ao espiritismo também, posso acrescentar, assumem um dogma sem saber – e um dogma muito mais antiquado e estúpido. Mas a questão aqui é que todos eles se diferenciam dos antigos credos por nunca terem sido claramente definidos como um credo. O que um espírita pressupõe é, na prática, isto: não apenas a existência dos espíritos, mas a inexistência de espíritos maus – ou pelo menos do mal extremo que nos é infligido pelos maus Espíritos. Dito popularmente, os Espíritas são otimistas em relação ao mundo espiritual. Os puritanos e as pessoas do século XVII eram geralmente pessimistas em relação ao mundo espiritual. Eles imaginavam, a torto e a direito, que qualquer um que lidasse com espíritos estaria lidando com maus espíritos. Desta maneira, transformaram de um assassinato para um massacre até mesmo o pior tipo de fogueira das bruxas. Eram deduções muito tremendas de um axioma, segundo o qual a natureza humana está mais próxima dos espíritos malignos do que dos bons. Mas ao menos os puritanos podiam afirmar seu axioma pessimista como um axioma. Já os espíritas não podem afirmar seu axioma otimista como um axioma; eles nem sequer sabem que é otimista. Eles simplesmente o sentem, inconscientemente, como o espírito do seu tempo – ou seja, não como algo sólido como o clima, mas tão inconstante quanto o clima.

Por isto que a principal objeção ao Espiritismo é quase idêntica à afirmação do Espiritismo. A objeção é que ele coloca um homem sob o controle de forças espirituais, ou que o coloca em contato com o desconhecido. Na verdade, é quase impossível encontrar qualquer elogio a tal crença nos espíritos, que também não sirva de reprovação na boca dos que crêem em maus espíritos. As próprias palavras ‘médiuns’ ou ‘controle’, de fato, atingirão muitos de nós como palavras imorais – eu diria palavras indecentes. Elas implicam uma rendição espiritual que é discutível, se for boa, e chocante, se for má. Agora, certamente que não é evidente, pela analogia de tudo o que sabemos, que não pode ser má. Que os investigadores não insistam sobre este perigo, ou não insistam sobre como é perigoso, é puramente devido ao esquecimento daquele primeiro princípio, ao qual me referi. Os espíritas são proibidos de aceitar a dedução deste paralelo espírita porque isso implicaria na negação do dogma espírita. E que não deixa de ser percebido como um dogma infalível, só por ser um dogma inconsciente. Se a visão que o homem tem do universo lhe permite ser o médium do que ele não sabe, e de se por sobre o controle de quem ele não conhece, que então diga, e afirme claramente sua visão do universo, como seus pais o fizeram antes dele. E assim, pelo menos, não cairá na lama dos interesses e antipatias, e poderá então optar por imaginar vistosos anjos com asas brancas, porque os prefere aos negros.

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Gilbert Keith Chesterton, Illustrated London News, 15 de março de 1919. Ilustração “Spiritualism made useful”, de
George du Maurier, 1876.

Sobre Patmos, por Hilaire Belloc.

Foto: Belloc em seu barco, 1931.

Há algum tempo atrás eu navegava para o sul, ao longo da costa leste da ilha de Patmos, que eu nunca tinha visto antes, exceto uma única vez, de muito longe, vindo do oeste. Estando agora mais perto, pude apreciar melhor e ver como o elevado contorno da ilha conduz ao Mosteiro de São João, em direção ao seu cume.

Todos nós falamos da grande beleza que estas ilhas do Mar Egeu possuem; e assim o fazemos em linhas gerais. Aquele mar, glorioso em cor e textura, é tanto mais maravilhoso por esta diversidade de suas ilhas – cada tonalidade, desde o verde intenso próximo da costa, até a distante ametista no horizonte, que pode ser terra ou uma nuvem distante um longo dia de navegação. Mas uma coisa atinge o olho ocidental ao mesmo tempo, mais do que a cor, e é a nudez da terra.

Não é a nudez cintilante das rochas calcárias, como as que fazem as margens ardentes da Provença parecerem meio desertas. As encostas arredondadas de Patmos, e de quase todas as outras ilhas que povoam todas aquelas lindas águas, são férteis. Elas suportariam um florescimento denso e alimentariam grandes árvores, como faziam na antiguidade. O que destruiu as florestas foi a praga maometana.

O Islã é inimigo do que é gratuito, como é inimigo de todo esforço humano paciente e contínuo. O Islã derrubará florestas para combustível ou para construir ou por mera devastação, mas não se preocupará em replantar, muito menos em proteger, os brotos contra caprinos e outros inimigos. Então Patmos, embora seja fértil, está nua, como todos os seus vizinhos entre Creta e o Dardanelos. Não vemos, quando olhamos para ela, as coisas que São João viu, vemos algo que foi devastado. No tempo de São João, era arborizado. Tinha até bosques de palmeiras (dos quais restaram alguns). Era humano e com folhas. Agora está esvaziada e nua.

Se isto é verdade sobre a ausência de árvores, é ainda mais verdadeiro a respeito da ausência de casas. Não há maior contraste entre o leste e o oeste do Mediterrâneo, pelo menos entre a parte cristã principal e as margens que os turcos saqueavam, em vez de governar, do que esta fuga da habitação humana do litoral. Não há maior sinal do que os Turcos significavam para os habitantes das ilhas gregas. Significou massacres e saques esporádicos, tanto quando não conseguia proteger seus súditos da pirataria como quando ele próprio caia em um de seus acessos de raiva anti-cristã.

Homens construíam sob o vulto desse terror. Mas eles construíram pouco. Construíram de maneira distante e espaçada uns dos outros. A quantidade, declinou. Para termos uma imagem exata do que todo aquele mundo marinho era, no tempo dos primeiros cristãos, e compará-lo com o que vemos hoje, devemos entender o que a falsa doutrina pode trazer para o mundo. O paganismo antigo, sendo uma preparação para a Fé, não fez tanto mal. Foi o Maometanismo, a maior e mais virulenta das heresias (e a mais persistente), quem deve levar a culpa.

Outro pensamento que me ocorreu, ao passar por aquelas costas famosas mas agora solitárias, foi o significado para aquela época – e desde muito antes – do exílio. São João foi exilado em Patmos. Estava convenientemente perto de Éfeso, e ainda assim completamente isolado. Era um lugar pequeno, e por isso facilmente protegido, mas há aqui um problema histórico que eu nunca vi resolvido, e que é este: qual era o exato significado do exílio?

Era, podemos dizer, uma espécie de encarceramento livre e amplo. O grande fardo (para a maioria dos homens) era a separação do lar e dos amigos. É tudo o que sabemos; mas, como era imposto?

O mundo moderno está repleto de um sistema policial complexo e onipresente, tanto público quanto privado. Nunca se sabe, em Londres ou em Paris, em qualquer espaço ou veículo público, se a pessoa ao lado pode não ser o que se chama elegantemente de “um agente secreto”. Mas essa é uma das dádivas recentes da civilização. A antiguidade era mais casual. Um pequeno lugar como Patmos poderia ser vigiado de perto, mas não teria sido impossível, para um exilado, fugir. Então como eles conseguiram manter um homem importante como Ovídio, isolado, nas margens do Mar Negro? Colocando de outra maneira, como poderia Luís XIV, séculos depois, ter certeza de que um nobre a quem ele “exilou” de sua corte, para as províncias, “ficaria lá”?

Outro problema muito maior, uma questão muito mais importante, surge na mente quando se olha para Patmos, a partir do mar. Precisa ser respondido de uma forma ao mesmo tempo delicada e profunda. É o seguinte: por que surgiu um antagonismo agudo entre a Igreja Católica e a antiga civilização, da qual todos nós brotamos? Essa civilização é a nossa. Foi a sementeira da Fé, o mundo greco-romano foi aquele que a Igreja penetrou, transformou e, por fim, restaurou em melhor forma, após a provação da Idade Média. Por que ele resistiu tanto contra os primeiros movimentos da Verdade? O exílio de São João, em Patmos, foi um dos primeiros exemplos deste embate, que deveria durar, ainda, por mais três longas gerações. Qual foi a desavença deles conosco? Por que Tertuliano, que disse que as irmãs gêmeas, o Império e a Igreja, deveriam ser uma só, poupou os Césares da obrigação de se tornarem cristãos? Por que os Césares demoraram tanto tempo para aceitarem seu destino? Nós nunca tivemos uma solução completa para este enigma.

Sabemos muito bem porque a virulenta, debilitada e moderna hostilidade à Fé é o que ela é. É o ódio da corrupção pela saúde, o ódio do vício pela virtude. Mas, por que aquilo que foi o auge do amor em verso e em pedra lutou contra a completa beleza, tentando destruir a única harmonia possível?

Eu gostaria de sugerir que a batalha brotou de uma daquelas turvas mas profundas intuições sobre o futuro, “o grito dos que estão para nascer”, que parece ter, de alguma forma misteriosa, afetado os homens antes mesmo dos acontecimentos. Que os torna pouco sensíveis ao que não é, mas sim ao que deve ser. A Igreja Católica não veio para destruir, mas para completar. Lamentavelmente, aquilo que veio completar estava muito satisfeito com o seu próprio mal, bem como com o seu próprio bem. A ameaça de tanta mudança foi um desafio mortal. Daí (como me parece) o crescente atrito entre o antigo Império Romano e a Igreja Católica, para a qual esse Império era uma preparação tão nobre. Daí, penso eu também, a explicação da violência em que terminaram as perseguições. Houve uma espécie de espasmo, uma luta de vida e morte, já no final, a qual chamamos pelo nome geral de “perseguição diocleciana” – embora o próprio Diocleciano, pobre homem, não fosse o principal culpado.

Há sobre a Igreja Católica algo absoluto que exige, provoca, requer aliança ou hostilidade, amizade ou inimizade. Aquela verdade que você encontra, inalterada, através dos tempos, e por isso é que, logo no surgimento da Igreja, o desafio já está posto – e é isso o que Patmos significa.

Muito mais, é claro, me veio à mente, enquanto navegava lentamente para o sul, à noite, ao longo da costa e para além dela; e de todos os pensamentos que se apinhavam, este predominava: “Que  belo reconhecimento é, para São João, que sua altíssima visão fosse particularmente desafiada pelos inimigos da religião!” Não foi apenas o mundo pagão da costa do Egeu que o tomou por inimigo. É, e tem sido, muito mais o ataque moderno e anti-cristão, que é e tem sido, obcecado por ele.

E ele é capaz de enfrentá-lo.

– Hilaire Belloc em seu livro de ensaios “Places”, 1942.

A testemunha da Verdade abstrata, por Hilaire Belloc.

Discurso proferido no Tomás Moro Memorial, em julho de 1929, antes da canonização do mártir.

Foto: Hilaire Belloc discursa na Brighton Art Galleries, 1935.

 

“Venho falar-vos hoje sobre o Beato Tomás Moro, e venho falar dele sob um só aspecto; pois o que um homem pode dizer nos breves momentos de um discurso público não deve, sobre tal assunto, tocar mais de um aspecto, para que seu público não fique confuso. Mas esse aspecto é certamente o principal em relação a tal nome.

Venho falar-vos da natureza do seu sacrifício; não da sua vida, da sua erudição, do seu humor, da sua grandeza mundana, do seu declínio voluntário dela; não da bondade do Beato Tomás Moro, que ele deu e recebeu; nem da múltipla humanidade que tem cativado naqueles que menos compreendem o seu último e tremendo ato. Pois todos devemos lembrar que se tornou moda, entre os que menos compreendem ou menos amam a Igreja Católica, fazer certas exceções a seu favor. Por assim dizer, bodes expiatórios ao contrário. Eles citam, na história, um ou dois católicos da grande multidão de mártires, confessores, médicos e simples santos, tudo para não falarem dos católicos comuns, a quem se negam louvar; há o Santo Francisco de Assis, porque ele gostava de animais; há (para alguns deles) São Bernardo, porque ele impediu um motim contra os emprestadores de dinheiro; e há o bem-aventurado Tomás Moro – porque quando você está elogiando Cranmer, Henrique seu mestre e, pelo que eu sei, o próprio Thomas Cromwell, você deve ter algum contrapeso para parecer liberal, de mente aberta. E o abençoado Tomás Moro está lá, pronto para se entregar.

Tudo isso, eu confesso, eu desprezo como merece ser desprezado. E eu em estou aqui para falar daquelas outras maravilhas suas, que merecidamente louvamos, e pelos motivos certos – seu amor à justiça e aos pobres, seu desprezo pela riqueza, sua autodisciplina na vida, seu alegre suportar do fardo deste mundo – mas apenas da maneira como é retratado. 

O que estou aqui hoje para enfatizar é isto – o Bem-aventurado Tomás Moro morreu em defesa de uma verdade específica e solitária, porque era a verdade nua e crua, e por nenhuma outra razão. Ele não fez um sacrifício disto ou daquilo – e ele tinha feito muitos sacrifícios – ele não desistiu, pois os homens heróicos desistem ao nosso redor, dia após dia, de posição, renda e do conforto daqueles que lhes são mais caros, em favor da Fé. Abandonou a própria vida, voluntariamente; aceitou a morte violenta como um criminoso, não só pela Fé como um todo, mas por um pequeno ponto particular da doutrina – a saber, a supremacia da Sé de Pedro.

Deixe-me agora discutir a magnitude deste ato. É de grandeza suficientemente excelsa que ele tenha sido sustentado por um ponto isolado da verdade. Mas havia muito mais. Foi um sacrifício sem estímulo exterior.

É isso que desejo afirmar, reafirmar, repetir, e repetir novamente. Isto é o que desejo testemunhar e que, se eu tivesse o poder, faria prevalecer em cada história. Não que este homem único tenha abdicado de muito por sua consciência; que, para honra da humanidade, miríades têm feito e farão. Nem mesmo que ele tenha desistido da própria vida por essa causa. Nem sequer que ele tenha desistido dela por um artigo isolado entre tantos. Mas sim que ele encontrou, dentro de si mesmo, o necessário para assim agir, sem qualquer apoio: foi um triunfo da vontade.

Agora consideremos como os homens são sustentados, em seus raros heroísmos. 

Há, em primeiro lugar, o apoio daqueles que, mais fracos que o próprio mártir, lhe desejam o bem; daqueles para quem ele é um símbolo, e a quem se voltam secretamente como a um estandarte, e pelos quais esperam, talvez, reconciliar-se mais tarde com aquilo que sabem ser a verdade, mas que não têm a coragem de proclamar. Ele não era amparado por uma moda dominante; nem sequer era amparado, propriamente dito, por uma tradição, e – o mais espantoso de tudo – ele não era sustentado por nada mais do que aquele supremo instrumento de ação, a vontade católica.

Newman disse muito bem que todos nós morremos sozinhos; de fato, isto é morrer só! Deixar-se matar, por vontade própria, pleno de vida, ao invés de pagar o preço por ceder sobre um ponto árido, restrito e intelectual; ter que aplaudir, apoiar e defender, sem entusiasmo nem a aprovação íntima.

Deixe-me colocar à sua frente esses dois pontos. São essenciais à compreensão da escala sobre a qual o mártir agiu.

Primeiro, eu digo, ele não encontrou apoio dentro de si mesmo.

Ele não tinha entusiasmo pelo Papado; ele não tinha uma tradição de defendê-lo; nenhum hábito, nenhum corpo formado de argumentos e ações em seu favor. Ele não defendia o Papado (numa época em que seus direitos estavam sendo questionados por toda parte), porque era um assunto de segunda ordem para ele. Não só, era justo o contrário.

Toda sua vida ele foi – como de fato foi todo homem de inteligência, juízo e coração, no período de transição entre a Idade Média e o Moderno – um reformador no sentido pleno dessa palavra. 

Tinha sido na sua juventude o Erasmo inglês, denunciando com desprezo, como mil outros, não só os múltiplos e gritantes abusos em que a organização eclesial havia caído, mas muitas outras coisas que não são abusos de todo, mas antes devoções honestas, embora um pouco exageradas. 

Seu entusiasmo, o lume de seu pensamento, suas lembranças das intensas emoções daqueles acontecimentos estavam todos em harmonia com aquela chama do zelo reformador, que pode tão facilmente ser desviada, nestes momentos, para a rebelião contra a unidade da cristandade. Sobre esse ponto particular da Supremacia Papal, ele nunca se preocupou. 

Ele emergiu de uma geração profundamente abalada; seus intelectuais, desprezando o estado em que a Sé de Roma havia caído, cheios das lembranças do Cisma e dos Concílios, estavam longe de admirar a pompa temporal e, o que era pior, as receitas mecanicamente auferidas pela Corte Papal. 

Se a morte de Tomás Moro tivesse sido uma morte pela Presença Real de Nosso Senhor no Sacramento do Altar, pela Santíssima Mãe de Deus, pela luz dourada que é lançada sobre a terra pelo movimento das asas da Fé, seria outra coisa bem diferente. Ele estaria engajado, e aí o homem todo estaria comprometido. Assim tem sido com grandes multidões de mártires. Mas não com ele.

Ele tinha, nesta questão da Supremacia, examinado de perto a coisa, como se fosse um entre qualquer outro problema histórico: “lendo-a”, considerou os prós e os contras. E em certo momento – um homem de leituras profundas, um excelente advogado com um cérebro afiado como uma navalha para separar uma categoria da outra – hesitou se a supremacia do Papa sobre a Cristandade era feita pelo homem ou não. Ele se inclinava a pensar que era uma coisa feita pelo homem. Após ponderar sobre tudo exaustivamente, ele chegou à sua conclusão, assim como um juiz, sem “afeição”, sem nenhum movimento particular do coração. A Supremacia de Pedro e seus sucessores (ele decidiu), era de origem divina.

Até aqui, tudo bem. Aquele ponto sendo isolado – intelectual, não moral, de forma alguma ligado ao coração, nada que pudesse inflamar um homem – ele o manteve cuidadosamente guardado e claro. Ele estava disposto a admitir a sucessão do filho de Ana; a fazer os juramentos de lealdade em qualquer grau e sobre qualquer coisa, salvo aquele ponto da Supremacia. E ele saiu correndo para defendê-la com furor? Longe disso! Ele a manteve em segundo plano; tentou não responder sobre ela; acompanhou os debates como um advogado de defesa, apontando todos os argumentos, guardando a ação.

Tudo isto é muito frio e muito frustrante. Mas ele morreu – o que é mais do que você e eu teríamos feito. E ele morreu alegremente.

Tampouco este homem extraordinário foi estimulado desde fora. Não tenho certeza de que tal apoio não seja de maior valor (embora admita que a idéia seja paradoxal) do que um sustento interior. Muitos homens e mulheres, eu imagino, foram martirizados ou sofreram algum inconveniente menos grave, depois de terem sofrido, em seus corações e mentes, graves agressões contra a Fé, mas foram consolados pela atmosfera envolvente da Cristandade. “Posso por minha própria culpa e negligência ter perdido o firme domínio sobre minha Fé, mas é meu dever apoiar outros que estão em melhor situação. Todos eles concordam. Eles me consideram como seu estandarte; e eu não cederei”. Tais mártires, imagino, terão um lugar muito elevado; pois servir à Fé por um ato de vontade é maior do que servi-la sem a interrupção por alguma fragilidade humana. Mas, em todo caso, Tomás Moro não era desse tipo. Ele não era sustentado desde fora.

Passados quatrocentos anos, esquecemo-nos hoje como o assunto era para os homens do início do século XVI. O inglês médio tinha pouca preocupação com a disputa entre a Coroa e Roma. Isso não lhe afetava a vida. A missa continuava como antes e com todo o esplendor da religião; os mosteiros ainda estavam em toda parte, não havia qualquer interrupção. A maioria dos grandes personagens – todos os bispos, exceto Fisher – se renderam. Eles não cederam com grande relutância, evidentemente. Aqui e ali havia protestos, e dois órgãos monásticos em particular haviam explodido, por assim dizer, em chamas. Mas isso foi exceção. Para o homem comum da época, qualquer um, especialmente um funcionário altamente colocado, que se colocasse contra a política do rei, seria um louco.

Devemos ter certeza disto ou então reconhecer que não entendemos a época. Reis tinham brigado com papas repetidas vezes. Em matéria de doutrina e prática Henrique era particularmente devoto e católico. Reis tinham se reconciliado com Papas repetidas vezes. Por gerações, o Rei da Inglaterra tinha na prática sido senhor absoluto de seu reino, e em noventa e nove casos de uma centena, as ações papais eram apenas uma formalidade. Seria uma péssima idéia tornar-se impopular por defender, e ao fim parecer um tolo, um ponto particular da doutrina – que, afinal de contas, poderia não ter importância alguma poucos anos depois, quando Ana Bolena deveria estar morta, talvez, mas no caso de os dois partidos, o do Rei Henrique e o de Ana Bolena, haverem se reconciliado, novamente. Esse era o ponto de vista (entre outros milhões) da esposa do Bem-aventurado Tomás Moro, e ele era muito o que se chama de um homem de família, tolerante com a insistência. Esse era também o ponto de vista de quase todos os seus amigos. E era mais difícil resistir porque eles o amavam e desejavam salvá-lo. Se eles se unissem em coro para dizer: “Este homem forte está resistindo; ah, se tivéssemos a mesma fibra!”, teria sido um apoio. Mas essa não era a atitude deles. A atitude deles era mais: “Este homem criativo e fortemente amarrado, que fez mais de uma bobagem em seu tempo, que jogou fora sua grande posição como chanceler, que em sua juventude publicou uma espécie de livro socialista, está aprontando novamente! Você nunca sabe o que ele é capaz de fazer! Realmente, ele é um bom sujeito, e alguém deveria argumentar com ele para que desista deste absurdo”!

Não, ele não teve nenhum apoio de fora.

Deixe-me terminar dizendo que ele não era apoiado pela posteridade. Há homens que podem descansar sob a tensão de uma provação na convicção de que seu sofrimento é uma semente para o futuro. Confesso a suspeita de que homens como More têm, em meu julgamento, uma visão confusa do futuro. Se a tinha, deveria saber que seu sacrifício era aparentemente em vão. Se ele pudesse retornar a esta terra hoje (e estou certo de que deve ser o menor de seus desejos!), ele não descobriria que havia semeado uma semente. Ele não encontraria – pois eu não digo que ele salvou a Fé neste país – mesmo que a Fé houvesse se conservado na vida inglesa, como um homem razoável poderia supor em 1535. Se o Beato Tomás Moro voltasse à vida neste seu próprio país, hoje ele acharia a Fé uma coisa estranha, e se enalteceria com o que eu chamei de “bode expiatório ao contrário”, um “bode expiatório para o passado”, uma exceção que deve ser louvada apenas por ter dado mais espaço para enaltecer os espíritos vis que serviam à corte. Em tudo isso ele sorriria, sendo um homem de humor; ou mais provavelmente, sorriria agora. Em todo caso, ele não pôde contar com o apoio da posteridade.

Se algum dia um homem morreu sozinho, ele morreu sozinho.

E a moral é clara. É nosso dever desistir de tudo por tudo o que é verdade, quer nos agrade ou não; quer tenhamos outros conosco ou não; quer o nosso humor concorde ou repulse. A inteligência é absoluta em sua própria esfera. A inteligência nos manda aceitar a verdade, e para a verdade o homem deve dar a sua vida.

Que todos aqueles, portanto, que ao definir a verdade, ainda que seja apenas num canto e em relação a uma coisa seca, que a eles pareça morta, invoquem o patrocínio desse mesmo cidadão inglês. Sua diversão, sua coragem, sua erudição lhes será vantajosa, assim como sua santidade – se em breve eu puder falar de tal qualidade”.

– Hilaire Belloc, “One Thing and Another: A Miscellany from His Uncollected Essays”, selecionados por Patrick Cahill, Edição de 1955. Foto: Belloc discursa na Brighton Gallery em 1935.

Pobre tradução, esta – mas tinha que ser tentada. Pela memória de Carlos Manuel, em quem todos vimos resplandecer a vontade de viver e defender a Fé. ICXC NIKA.

Lembre-se, alma cristã.

ChristandThorns

Lembre-se alma cristã, que você tem hoje, e todos os dias de sua vida:

Deus para glorificar, Jesus para imitar, a Virgem Maria e os santos para venerar, os Anjos para invocar, uma alma a salvar, um corpo a mortificar, pecados a expiar, virtudes a adquirir, o inferno para evitar, o céu a ganhar, a eternidade para se preparar, tempo para lucrar, vizinhos para edificar, o mundo a desprezar, demônios para combater, paixões para subjugar, a morte talvez a sofrer, e submeter-se a julgamento.

Agostinho de Hipona.

Nota: infelizmente, nunca consegui confirmar a autoria da frase acima, indicada por um blog do Tumblr como sendo de Santo Agostinho. Nem o contrário. Fica a advertência, em todo o caso.

De São Bernardo de Claraval para seu sobrinho, Roberto.

“PORTANTO, levanta-te, soldado de Cristo, levanta-te, sacode a poeira, volta à batalha da qual fugistes, para lutar com maior brio depois de tua fuga, e teu triunfo será mais glorioso, porque Cristo tem muitos soldados que começaram a lutar com intrepidez, perseveraram e venceram, mas poucos desertores arrependidos se arrojaram de novo ao perigo que se esquivaram. Poucos foram os que puseram em fuga aos inimigos de quem fugiram. E como todo o extraordinário é precioso, me alegra que tu possas ser um desses que, quanto mais excepcionais, mais são gloriosos. Se, por outro lado, és muito tímido, porque temes quando não deves e não temes quando mais precisa fazê-lo? Por acaso pensas que te livrastes do poder dos inimigos porque fugistes da batalha? Pois saibas que o adversário te persegue mais alegremente se foges que se lhe fazes frente, ataca com mais audácia pelas costas, mas oferece menos resistência quando é enfrentado. Tu lanças as armas e dormes tranqüilo pela manhã precisamente na hora em que Cristo ressuscitou, e ignoras que desarmado perdes valor e és menos temível para os inimigos?”

Uma das raras traduções de São Bernardo, da lavra do professor Ricardo da Costa.

O Herege, por Gilbert Keith Chesterton.

Nota: Este artigo foi publicado em uma edição de 2014 da Gilbert Magazine, com o título original “The Heretic” e me calou profundamente. Talvez por estar naquela altura relendo A História das Grandes Heresias, do Belloc; talvez por que o Sínodo convocado por Papa Francisco para discutir como acolher na Igreja de Cristo o adultério e a sodomia fosse (e ainda é) o assunto do dia; talvez por estar me dando conta aos poucos que a história da Igreja poderia ser definida como a eterna luta pela salvação das almas e o combate às persistentes heresias que sempre tentaram simplificá-la, fato é que este artigo serviu para colocar muitas coisas na perspectiva correta. O que não consegui na época em que li Hereges, o livro do próprio Chesterton. Tanto assim o foi que pela primeira vez nasceu em mim a necessidade de traduzir um texto. Pois, Deus o sabe, ele bem poderá servir a outros, homens de reta razão e boa vontade, a perceberem a sutileza e astúcia com que a heresia se move rumo ao coração da Igreja, desde Simão o Mago até o combate final e com isso possam emendar suas vidas e seus erros. Nesta tarefa para mim hercúlea, de traduzir um texto do Chesterton, pedi ajuda ao amigo Pedro Erik, o bravo católico por trás do ThySelf, O Lord, que prontamente assentiu. O resultado segue abaixo, com minha eterna gratidão ao Pedro pelos nós que desatou. Se alguma parte do texto deixou a desejar, essa é de minha responsabilidade. Paz e bem.

Acima,

Acima, “A Vitória da Verdade Eucarística sobre a Heresia”, de Rubens.

O Herege
por Gilbert Keith Chesterton

Ao menos do ponto de vista humano, o teste e momento crítico da conversão é tão inteiramente racional e até mesmo racionalista, que somos tentados a ser impacientes com a falta de racionalidade com que é discutido por aí. É uma questão de saber se um certo mensageiro é ou não é o que ele diz ser.

Não é uma questão de saber se a mensagem é exatamente o que nós esperamos que ela seja; não é o caso em que não há nada nela que nos surpreenda, ou nada nela que nos intrigue, ou nada que nós mesmos alteraríamos. Não é uma questão de se deveríamos ter enviado outra mensagem; mas sim uma questão de saber quem enviou a mensagem.

Um homem me traz um bilhete ou um recado de meu amigo Robinson, solicitando que me encontre com ele no sexto poste em frente da casa com hibiscos numa determinada rua em Hungerford; e seria bem razoável para mim duvidar, em linhas gerais, se o mensageiro veio a pedido do meu amigo Robison afinal. Ele pode estar esmolando um drinque, ou me atraindo para um covil de ladrões, ou simplesmente aplicando em mim uma brincadeira de primeiro de abril. Mas não é razoável que eu acolha a mensagem como genuína, verdadeiramente vinda de meu amigo que quer um encontro e então dizer ao mensageiro “Você não acha que poderíamos marcar o encontro numa casa com girassóis ao invés de hibiscos, por que hibiscos não são minhas flores favoritas?”. Ou então “Vamos mudar do sexto para o sétimo poste por que sete é um número de sorte”. Ou ainda “Eu não imagino por que deveríamos ir à Hungerford, por isso da minha parte eu irei esperar por ele em Hampstead”.

Esta atitude não é razoável, por que não é relevante para a natureza da mensagem se a mensagem é a mais trivial ou a mais extraordinária. É lógico duvidar de uma mensagem ou dispensar um mensageiro, ou negar que o mensageiro seja um mensageiro de verdade. Mas não é lógico pedir ao mensageiro que altere sua mensagem.

Esta lógica básica, o cerne da questão, é tão familiar a nós que somos tentados à irritação, como disse, quando descobrimos o quão incomum se tornou este bom senso em nossos contemporâneos.

Mas há um ponto de vista mais sutil e compassivo a todo este assunto, e há variações e gradações de significado que podem ser encontrados neste silogismo tão simplificado. Mesmo entre os que rejeitam a mensagem, e entre os que rejeitam esdrúxulos fragmentos dela, há variados tipos e alguns mais estranhos e desafiadores. Mas apenas um deles deve ser selecionado, neste sentido prático, como um herege.

Eu não estou, obviamente, empregando nenhuma destas palavras no sentido autoritário da ciência teológica, em que elas poderiam ser relacionadas com muitos tópicos teológicos, mas eu as considero somente em sua variedade psicológica. E neste sentido prático, há um tipo de ser humano na história que talvez possa, com especial precisão, ser chamado herege. Ele não é, por exemplo, o mesmo tipo de um fanático; apesar de frequentemente o fanatismo ser o cadáver ou fóssil de uma heresia morta. Ele é alguma coisa diferente de um mero pagão não convertido; e ele é muito provavelmente o oposto do agnóstico ou do cético.

A coisa estranha sobre o herege é esta. Todos nós sabemos que a heresia na verdade é escolher e selecionar, assim como meu sujeito imaginário escolheu pedaços da carta do Sr. Robinson. Mas há uma qualidade sobre o escolher e selecionar dos hereges, em especial dos grandes heresiarcas, que nunca foi adequadamente percebida. O mistério de Maomé ou Lutero ou Calvino, ou de qualquer um dos grandes fundadores de sistemas heréticos, sempre foi este; primeiro, que eles aceitaram a ideia de um plano Divino como já estabelecido; e então eles duvidaram e depois negaram que o antigo sistema fosse divino; e terceiro e mais surpreendente de tudo, que eles nunca duvidaram por um instante da singular doutrina que eles escolheram crer em um sistema que eles recusaram, e nunca sequer pareceram desconfiar que qualquer um poderia um dia arriscar-se a negá-la.

Tal heresiarca foi sua própria testemunha para o fato de que um homem poderia negar mil coisas que foram aclamadas como Divinas. Mas ele parece não ter antecipado que alguém poderia negar alguma parte do que ele absteve-se de negar. Se ele preservou alguma relíquia dos efeitos da revolta e da destruição, ele parece crer que todos, até o fim do mundo, também irão sempre preservar a mesma parte em qualquer revolta ou destruição. Esta é a excentricidade que distingue o herege original do cético ou mesmo do crítico inconsistente. É o fanatismo com que ele afirma a coisa que ele não nega.

O seu lugar na parábola acima não é o do sujeito que recusa ou aceita o mensageiro, nem mesmo o do que realiza criativas modificações na mensagem. Ele é o sujeito que se fixa em um característica da história do mensageiro e a torna não apenas mais importante que o resto, mas mais importante que qualquer outra coisa. Ele irá se opor a todo o resto, desmentindo e blasfemando no último grau. Ele irá professar que se evite Hungerford como se lá fosse o inferno. Ele irá desfolhar todas os hibiscos que existem, como se fossem uma erva venenosa ou uma jardim de plantas peçonhentas. Mas o sexto poste não só será correto como será sagrado; uma lâmpada a guiar todos os nossos passos, uma luz a purificar todos os homens que venham ao mundo.

Isto não é um exagero, considerando a história da heresia. Por exemplo, os Puritanos tomaram o sétimo dia exatamente como o sexto poste. Em uma centena de outras maneiras eles se privam, confundem e descolorem quase todos os tipos de rituais ou pompa religiosa.

Através das sobras de seus preconceitos, milhares de homens modernos ainda são assombrados com aqueles pedaços de perfeitas más psicologia e teoria educacional; a noção de que todas as cerimônias são sem significado ou obstáculos ou perigosas para a pureza. Eles manobraram para reter isto mesmo sendo devotos extremos do Velho Testamento, que é pleno de cerimônias. Ainda assim eles se agarraram numa fanática obsessão pelo Sabbath. Que era um pedaço específico, não só da tradição Cristã, mas da peculiarmente complicada e ritualizada lei Judaica. E por fim eles criaram o Sabbath Escocês, que era consideravelmente mais sombrio que o Shabbat Judaico.

A coisa estranha é que nunca parece ter-lhes ocorrido que homens poderiam negar o Shabbat assim como eles negaram o Sacramento. Isso não é simplesmente uma questão sobre a enorme tradição do Sacramento na história da Cristandade. Ele surgiria de qualquer forma a partir da condição do Sabbath na história de Jesus de Nazaré; o mais simples e objetivo apelo na história no Novo Testamento.

Seria mais fácil realizar um ataque primitivo às coisas dos Evangelhos que eles guardaram do que às coisas que eles rejeitaram. Não há simplesmente qualquer evidência de que Jesus Cristo desaprovasse os rituais. Ele sempre se referia às celebrações no Templo, que eram muito ritualizadas, como todo o serviço religioso de Seu povo. Ele introduziu as ofertas comuns e tradicionais em Suas parábolas, e sempre em um bom sentido.

A única instituição Judaica em que Ele possa ser interpretado como contestador foi o Shabbat. Ninguém o acusou de denunciar os sacrifícios ou o candelabro de sete velas; as pessoas o acusaram de blasfemar contra o Shabbat. E ainda assim, por uma enorme perturbação artificial e invertida, estes hereges típicos manobraram para aterrorizar nações inteiras com uma idolatria cega do velho Sabbath judeu; quando eles próprios estavam assustados de acender uma vela e odiavam até as sombras, ou a mística repetição, de um sacrifício.

Este é apenas um exemplo histórico; há outras centenas na história. A questão é que o herege é um fanático a respeito de uma coisa, e um cético sobre centenas de outras coisas. E ainda assim ele sempre encontra a coisa pela qual ele é fanático no sistema a respeito do qual ele é um cético.

Não há incontáveis exemplos desta contradição apenas em épocas passadas; mas existe uma forma ainda mais contraditória desta contradição nos tempos modernos; a respeito da qual eu talvez me esforce por escrever alguma coisa em uma próxima ocasião. Mas talvez seja melhor concluir aqui sobre os erros religiosos mais evidentes e viris que o Puritanismo do século XVII tenha sido talvez o último.

O Calvinista estava pronto para matar três quartos da Cristandade e morrer pela última parte. Mas ao menos ele sabia que seu fragmento favorito da Cristandade era Cristão. Nos tempos modernos estamos cercados com uma nova e mais ignorante classe de hereges, que sabe tão pouca história que não conhece sequer sua própria história; ou a história de suas próprias ideias. No fundo, porém, eles agiram pelo mesmo estranho princípio, tanto em relação as coisas em que acreditam quanto as que não acreditam. Eles não sabem de onde veio seu credo; e eles certamente ignoram para onde suas descrenças irão em seguida. Mas elas são tão divertidas que exigem serem tratadas em separado.

Amizade, treva luminosa — inimizade, luz trevosa

O pai do Contra Impugnantes, Sidney Silveira, publicou um dos seus maiores textos, em minha modesta opinião, sobre o tema da Amizade. É uma bobagem copiar e colar o texto aqui, que está lá para ser lido por todos, como o resto de seus artigos; mas é esta a minha forma de agradecimento e reconhecimento por este e muitos outros artigos do filósofo carioca, que me são tão 

Amizade, treva luminosa — inimizade, luz trevosa

A Vieira, palavra vivente.
Sidney Silveira
Amizade é benevolência no mistério, pois sempre haverá, entre verdadeiros amigos, zonas de sombra a serem preenchidas pelo amor. Na amizade, a escolha do bem da pessoa amada é concomitante com a impossibilidade de que esta possa ser conhecida perfeitamente por quem a ama — dado o caráter impenetrável dos corações humanos. Noutras palavras, quando uma pessoa decide entrar em comunhão amigável com outra, a vontade preenche, numa aposta confiante, as lacunas que a inteligência não consegue suprir, e por este motivo entre amigos não existe o esfíngico “decifra-me, ou te devoro”, mas um bondoso “sirvo-te, porque te amo”. Pelo menos esta é a tendência, conforme a amizade vai depurando-se do que pode azedá-la: vícios e incompreensão.
Estamos falando, evidentemente, da amizade humana. Esta não é elucidação de um enigma, mas livre entrega ao insondável que há no outro, pelo menos neste mundo de escuridão entremeada de luz. Só poderia haver identidade absoluta entre conhecer e amar se a inteligência de quem ama fosse capaz de esgotar o que há de inteligível no ente amado, conhecê-lo de maneira perfeitíssima. Ocorre que nenhuma pessoa humana é capaz disso, portanto o amor sempre estará, para nós, permeado de camadas de mistério. Somente uma inteligência suma, que não pode ser outra senão a de Deus, ama vendo tudo; nós amamos vislumbrando algo.
Algo que damos por bastante, pois um coração de amigo sacia-se com facilidade.
Deus, a infinita grandeza em três Pessoas, como ensina o dogma católico, torna amáveis as coisas que ama; nós, a pequenez encarnada, como aponta a evidente contingência conformadora da nossa existência, nos tornamos amáveis ao amar. Em contrapartida, quem não sabe amar vai fazendo-se odiável, e a medida de tal ódio é um egolátrico querer, fora do direito moral. Apelemos à seguinte fórmula: a amizade divina dá sem pedir, e quando pede dá;[1] a amizade humana pede ao dar, e dando sempre sonega; a inimizade exige sem poder, e não podendo usurpa. Em síntese, o amor em quem não carece de nada é entrega pura; o amor em quem carece de muitas coisas é súplica, mesmo quando entrega; por sua vez, o desamor dissimula quando oferece, e cobra quando pede. Neste último caso, trata-se do áspero caule que traz em si o fermento da desesperança, do medo e da traição.
Ora, ninguém trai sem antes ter sido amigo. Sem dúvida, trata-se de uma amizade medíocre porque feita de desconfiança, que é uma espécie de medo desgovernado; feita da negação do mistério; feita da incapacidade de esperar o bem em meio aos males inerentes à condição humana — afinal de contas, atire a primeira pedra o amigo que, numa relação longa, pode dizer em sã consciência que nunca pecou contra a amizade, seja com palavras, seja com omissões, seja com pensamentos. Mas o caso dos traidores de todos os tempos é bem mais dramático: eles tentaram amar, mas não estavam limpos o suficiente para livrar-se do egoísmo, realidade espiritual insaciável por natureza. “Porque ele sabia qual era o que o ia entregar, e por isso disse: ‘Não estais todos limpos”. (Jo. XIII, 11) Amaram com os seus defeitos, mas estes eram graves o suficiente para matar a amizade.
Quem não percebe a diferença de gênero entre a negação de Pedro e a traição de Judas está impossibilitado de compreender o que aqui se diz.
Prova-se a amizade nas questões importantes, e não nas miudezas cotidianas, pois tantas são as falhas dos homens que se uma amizade fosse medida por coisinhas pequenas nos manteríamos todos em permanente estado de guerra. Neste ponto, estamos no núcleo da benevolência misteriosa a que se aludiu no começo deste breve texto.
Uma benevolência semelhante ao raio de trevas luminosas, que é como o magnífico Pseudo Dionísio Areopagita se referia a Deus.
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1- Só metaforicamente se pode dizer que Deus pede algo ao homem, porque qualquer pedido Seu é preceptivo, pedagógico e moralmente imperioso, a um só tempo. O “não” de qualquer criatura a um pedido do Criador é, na prática, escravizadora desobediência a um princípio. É negação autodestrutiva, recusa da realidade. Todos os “pedidos” de Deus, constantes ou não da Escritura, são dádivas — porque o Ser qualitativamente infinito, ao agir, não pode fazê-lo senão doando algo de si.

Pois muito bem: não havendo nada fora d’Ele, porque “Deus immediate est in omnibus per essentiam, praesentiam et potentiam”, pode-se dizer que a Sua ação é sempre um transbordar metafísico.

Link para o artigo original.

Frei Tomé de Jesus e o consolo da oração

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Quis finalmente o Senhor ir buscar consolação na oração ao Padre Eterno, em quem sabia que não havia de achar dispensação do que lhe mandava padecer, para que entendamos que não está a divina consolação em nos tirar Deus os trabalhos que nos dá, mas em humilde sujeição e conformidade à sua santa vontade: e em andar sempre por amor unidos a Ele e pendendo em tudo dEle.

Todo sou miserável, bom Jesus, porque ou Vos fujo quando me atribulais e não busco em Vós consolação; ou Vos busco apegado à minha vontade e amor próprio, que impede a obra que quereis fazer nesta alma. Livrai-me de mim, Deus meu, pois eu sou o que me mato e o que ponho todos os impedimentos à Vossa graça e à Vossa luz e às Vossas soberanas mercês: em tudo sou quem sou, curai-me Vós, Deus meu, em tudo como quem sois.

(Frei Tomé de Jesus, Trabalhos de Jesus, II, trabalho 26) Fonte aqui.

Oração ao Anjo da Guarda, São Carlos Borromeu

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Virgem Maria em apoio a São Carlos Borromeu. Johann Michael Rottmayr (1654-1730).

 

 

Meu bom Anjo da Guarda, não sei quando e de que modo irei morrer. É possível que eu seja levado de repente ou que, antes do meu último suspiro, eu me veja privado das minhas capacidades mentais. E há tantas coisas que eu quereria dizer a Deus, no limiar da Eternidade… Por isso hoje, com a plena liberdade da minha vontade, venho pedir, Anjo da minha guarda, que faleis por mim nesse temível momento. Direis, então, ao Senhor, meu bom Anjo da Guarda:
Que quero morrer na Santa Igreja Católica, Apostólica Romana, no seio da qual morreram todos os santos, depois de Jesus Cristo, e fora da qual não há salvação.
Que peço a graça de participar nos méritos infinitos do meu Redentor e que desejo morrer pousando meus lábios na Cruz que foi banhada com o Seu Sangue.
Que aborreço e detesto os meus pecados que ofenderam a Jesus e que, por amor a Ele, perdoo os meus inimigos, como eu próprio desejo ser perdoado.
Que aceito a minha morte como sendo da vontade de Deus e que, com toda a confiança, me entrego ao Seu amável e Sacratíssimo Coração, esperando em toda a sua misericórdia.
Que, no meu inexprimível desejo de ir para o Céu, me disponho a sofrer tudo quanto a Sua soberana Justiça haja por bem infligir-me.
Não recuseis, ó Santo Anjo da minha guarda, ser o meu intérprete junto de Deus e expor diante dEle que estes são os meus sentimentos e a minha vontade. Amém.
Encontrei esta oração aqui. Agradeço aos mantenedores do site.